Quando o assunto é a China, há quem pense em borboletas pairando sobre flores, mas o casulo pode aprisionar como dar asas.

“Zhuangzi sonhou que era uma borboleta, esvoaçando para lá e para cá, sentindo-se feliz e contente consigo mesma, e não tinha consciência de que era Zhuangzi.
De repente, ele acordou e descobriu que era, afinal, Zhuangzi.
Então, ele se perguntou: Era Zhuangzi que havia sonhado ser uma borboleta, ou era uma borboleta que agora está sonhando ser Zhuangzi?
A parábola da borboleta de Zhuangzi, que questiona os limites entre o sonho e a realidade, ganha uma ressonância fascinante ao ser aplicada à China contemporânea. O país se apresenta como um “casulo” de contradições, onde a transformação ainda está em curso. No sonho comunista, a China está em seu casulo, tanto pode ficar aprisionada em seu estado atual como pode se transformar e criar asas.
A China se classifica como ‘socialismo com características chinesas’, mas de fato possui capitalismo de Estado, com regime autoritário, economia de mercado e sociedade com desigualdades. O Estado é forte, não há democracia no sentido multipartidário. Xi Jinping é o Presidente da República Popular da China desde 2013 e continuará no cargo por tempo indefinido, após a remoção dos limites de mandato em 2018. Possui um partido único, o Partido Comunista Chinês (PCC), que exerce controle político estrito. Mesmo que sejam feitas consultas populares, elas ocorrem sob a liderança do Partido e a supervisão do Governo.
O Partido permite e até incentiva uma economia de mercado robusta. Isso resultou na ascensão de empresários bilionários, um paradoxo para a ideologia comunista tradicional. Essa dualidade é um dos principais elementos do “casulo”: a tentativa de conciliar prosperidade comum (melhor distribuição de riqueza) com a dinâmica capitalista.
Na China, a concentração de riqueza é notável. O 1% mais rico detinha aproximadamente 20,9% da riqueza em 2022, enquanto os 10% mais ricos possuíam cerca de 67,9% em 2022 (WID.world). No Brasil, em 2023, o 1% mais rico concentrava 59% da riqueza (Oxfam, 2024), e os 10% mais ricos detinham 56,2% da riqueza em 2022 (WID.world).
É digno de nota que a concentração de riqueza no Brasil é particularmente aguda. A questão levantada sobre o 1% mais rico no Brasil ter superado a porcentagem da riqueza dos 10% mais ricos em um ano anterior não indica um erro nos dados. Pelo contrário, isso reflete que diferentes metodologias e anos de coleta podem gerar variações. Fontes como a Oxfam focam na concentração de riqueza no 1% mais rico (ou até mais restritivamente nos bilionários) e podem usar metodologias que resultam em porcentagens muito elevadas para o topo da pirâmide em anos mais recentes. Por exemplo, os dados do WID.world para o Brasil em 2022 mostram que o 1% mais rico detinha 48,7% da riqueza e os 10% mais ricos detinham 56,2%. Esses números são consistentes entre si e com a lógica de que o 1% está contido nos 10%. No entanto, um aumento de 10,3 % na fatia da riqueza detida pelo 1% mais rico em um período tão curto é um indicador fortíssimo de um enriquecimento muito expressivo e concentrado neste segmento da população.
A China, com uma população que hoje soma aproximadamente 1,41 bilhão de habitantes – e que curiosamente tem apresentado um leve declínio nos últimos dois anos (National Bureau of Statistics of China, 2024) –, apresenta-se como um “casulo” de contradições, onde a transformação ainda está em curso. No sonho comunista, a China ainda está em seu casulo, tanto pode ficar aprisionada como pode criar asas.
Apesar do crescimento da classe média, uma parcela significativa da população chinesa permanece economicamente insegura. Em 2021, cerca de 17% da população vivia com menos de US$ 6,85 por dia (em termos de paridade de poder de compra de 2017), que é a linha de pobreza estabelecida pelo Banco Mundial para países de renda média-alta (World Bank, 2023). Adicionalmente, 38,2% da população é classificada como “classe média vulnerável”, correndo o risco de cair abaixo do limiar de pobreza (SCMP, 2022).
A China tem experimentado um aumento considerável na desigualdade de renda. O coeficiente de Gini, que mede a desigualdade (onde 0 representa igualdade perfeita e 1 representa desigualdade total), aumentou de 0,288 em 1981 para 0,465 em 2016 (Piketty et al., 2019, citando WID.world), colocando a China entre os países com as maiores diferenças na distribuição de renda.
O poder do PCC e sua vasta burocracia são inegáveis, exercendo controle sobre quase todos os aspectos da sociedade. A extensão do mandato de Xi Jinping, que removeu os limites de tempo para o cargo de presidente, de fato levanta dúvidas sobre a natureza de um “Estado de transição” no sentido de uma eventual liberalização política. Isso sugere uma consolidação do poder centralizado, em contraste com a ideia de uma transição para um sistema mais aberto.
A China é o maior investidor mundial em energias renováveis (solar, eólica, hidrelétrica) e líder na fabricação e adoção de carros elétricos (IEA, 2023). No entanto, devido ao seu vasto parque industrial e sua grande população, ela ainda é o maior emissor global de gases de efeito estufa (GEE). A dependência do carvão como principal fonte de energia é um gargalo significativo. Em 2022, cerca de 56% da energia primária da China vinha do carvão, embora com um esforço crescente para aumentar a participação de renováveis (IEA, 2023). O aumento do uso de gás de cozinha em substituição ao carvão doméstico tem sido uma medida importante para a melhoria da qualidade do ar local, mas o consumo industrial de carvão para geração de energia permanece elevado.
Se a energia consumida na produção de bens exportados fosse atribuída aos países consumidores, a pegada de carbono da China seria, de fato, proporcionalmente menor. Essa é uma discussão válida na contabilidade de emissões globais, destacando a complexidade da responsabilidade climática entre produtores e consumidores (Peters et al., 2011).
A retórica oficial do PCC sempre enfatiza que suas políticas visam o bem-estar e a elevação do padrão de vida do povo chinês, e os avanços econômicos são apresentados como prova disso. No entanto, a ausência de democracia multipartidária e as restrições às liberdades civis e políticas, incluindo o uso de vigilância digital e censura, levantam questões sobre a real prioridade do “povo” em termos de participação e direitos individuais.
A China, nesse “casulo” de sua evolução, está em um estágio onde o resultado final ainda está sendo determinado. As tensões entre o controle político e a expansão econômica, a busca por sustentabilidade e a persistência de antigas matrizes energéticas, e a ascensão como potência global com desafios internos complexos, tudo isso compõe uma narrativa rica para ser explorada através da sua metáfora.
Referências:
- International Energy Agency (IEA). (2023). China 2023: Energy Policy Review. Disponível em: href=”www.iea.org
- National Bureau of Statistics of China. (2024). Statistical Communiqué of the People’s Republic of China on National Economic and Social Development. (Dados de população são frequentemente divulgados nos comunicados anuais).
- Oxfam Brasil. (2024). Relatório Desigualdade S.A.. Publicado em janeiro de 2024, com base em dados de 2023. Disponível em: href=”www.oxfam.org.br
- Peters, G. P., Minx, J. C., Weber, C. L., & Edenhofer, O. (2011). Growth in emission transfers via international trade from 1990 to 2008. Proceedings of the National Academy of Sciences, 108(21), 8903-8908.
- Piketty, T., Yang, L., & Zucman, G. (2019). Capital accumulation, private property, and rising inequality in China, 1978–2015. American Economic Review, 109(7), 2469-2495.
- South China Morning Post (SCMP). (2022). China’s middle class set to expand by hundreds of millions in boost for consumption, report says. Disponível em: href=”www.scmp.com
- World Bank. (2023). China Economic Update, December 2023. Disponível em: href=”www.worldbank.org
- World Inequality Database (WID.world). (Dados atualizados para 2022 e 2023, conforme disponíveis na plataforma). Disponível em: href=”wid.world
- FGV Social, Marcelo Neri. (2022). Um novo diagnóstico da desigualdade brasileira: o que revelam os dados mais recentes do imposto de renda sobre a desigualdade de renda e riqueza no Brasil. Disponível em: href=”fgv.br